Ela, elas e o rei Lear.

18-08-2016 13:06

    O vetusto rei ambicionava tão somente fazer a passagem do seu testemunho de vida à feminina prole. Aduladoras, as duas filhas mais velhas amaciavam a rudeza das rugas octogenárias com palavras docemente dissimuladas, ao passo que a mais nova, direta e sem rodeios, dizia ao pai não ter que o embarrilar para o amar e querer cuidar na velhice. O rei, toda a vida adorado e adulado por todos, não vislumbrava o alcance do amor filial mais novo e de pronto baniu a filha.

    Num belo dia de céu azul, que em Leiria iniciara cinzento, ela e elas, assistiram ao desenrolar desta tragédia shakespeariana, por terras da capital. Num local de beleza palaciana e nome aristocrático, e sob o aviso de que o cisne negro que habita as águas do lago do jardim é territorial e gosta de apanhar malas de incautas transeuntes, deambularam as oito por entre o verde citadino. Lá no alto, um avião fazia-se à pista do contíguo aeroporto; um comboio rápido e decidido fazia-se ouvir na linha de Sintra, e ali ao lado o estádio de um clube rubro deitava um olhar sobranceiro a tudo isto.

    À hora marcada, 18.18, mais segundo menos segundo, os aperitivos foram servidos, regados por bebidas a gosto de todas, despertando os sentidos para as novidades subjacentes. A entrada do palácio, imponente, fez-se pela escadaria azulejada. E numa belíssima sala adornada ricamente por teto em relevo, a história começou a desenrolar-se, com as personagens ali mesmo ao nosso lado, vozes profundas, projetadas, do teatro! Improvidentemente lá se ouviu um telemóvel… ai estes esquecimentos do público… Elas, as personagens, não se amofinaram com o sucedido e ali se foi revelando a trama que, em movimento, passou para a deleitosa e adornada varanda.

    A meio da trama, em interlúdio, adentramos numa requintada sala de jantar onde o buffet está exposto e é servido por aprimorados senhores vestidos de negro e papillon. O repasto é deveras aprazível, secundado com conversas ridentes, leves e doces, de gente que se gosta. A dieta decidida atrasa a sua chegada só mais uma refeição. Agora é momento de deleite achocolatado.

    Subtilmente a refeição termina, as personagens perfilam-se e a intriga de traições, paixões, combinações e atribulações continua, em espaços exteriores já iluminados pela jovem e anafada lua.

    Lear, o rei, já louco após um intrincado enredo de “maquiavilidade” filial, descobre por fim, mesmo antes de finar, quem lhe sempre fiel foi, perdendo pelo meio as filhas enganadoras. Fenecem quase todos, numa história que nos faz cogitar acerca das relações humanas, dos interesses que cada um em si instala, das motivações que movem os cordelinhos que prendem cada um de nós. O público aplaude com vontade e verdade e assiste à elegante saída dos atores, que, ao lusco-fusco, vão ascendendo a escadaria que os conduz ao fim da história.

    Ela e elas saem daquele jardim, de volta à sala onde ainda degustam um dulcíssimo e tuga pastel de nata, acompanhado de chá, maravilhadas. A C, mentora da aventura, diz não querer ir embora. Calmamente são as últimas a atravessar os portões do palácio dos Marqueses de Fronteira, de regresso às suas realidades.

    Uma tarde diferente, recheada de coisas boas e de companhia leve, amiga e saborosa. Ela venerou tudo. Elas também, assim ela intuiu e ouviu.  O rei esse, bem como quase todo o seu séquito, vitimas assumidas da ambição, ficou na lembrança daquelas paredes do palácio azul e bordeaux. Obrigada a elas… repetimos?

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